segunda-feira, 14 de setembro de 2015

LADO B - Carmen Duso Riberio Mendes

Por Valquíria Vita




Foto: Silvana Eufrázio
Foto: Silvana Eufrázio
A professora de Geografia apaixonada por ensinar,
que já conheceu 30 países
Carmen Duso Ribeiro Mendes ama viajar. Mas não aquele “ama viajar” que todo mundo diz. Ela é apaixonada por viagens e sacia esta paixão frequentemente. Já conheceu quase 30 países, tem uma netinha que vive em Londres (o que faz da Inglaterra seu novo destino preferido) e há 47 anos é professora de uma matéria que ensina, justamente, curiosidades sobre outros países. 

Quando tinha 40 anos, Carmen, professora de Geografia, colocou uma mochila nas costas e foi para o Norte da Europa com dez amigas. Passaram 36 dias viajando de trem e dormindo em albergues. Anos depois, conheceram todos os países da América do Sul. 

Se são histórias como essa que fazem com que os alunos gostem tanto de Carmen, não se sabe. Sabe-se que enquanto parte de seu coração está em diferentes países, uma outra parte está em Caxias, onde ela contabiliza de 800 a 1.000 alunos por ano. “Multiplique isso pelos 47 anos que sou profe,” diz Carmen. 

Parte desses alunos está entre seus amigos de Facebook, cujo perfil com cinco mil amigos está lotado (alguém com tantos amigos no Facebook só pode mesmo ser político, celebridade ou então uma professora muito querida). 

Além das viagens e da profissão, Carmen tem outra paixão: cinema. Um gênero, em especial, a atrai: os musicais. Na estante da sala de seu apartamento no centro de Caxias, DVDs de musicais como Moulin Rouge dividem espaço com (muitos outros) DVDs de bailes do Juvenil, clube do qual ela faz parte das atividades sociais. A paixão por filmes não surpreende, já que Carmen e o marido, Renan, passaram parte da infância e juventude dentro no Cine Ópera. “Quando éramos adolescentes, meu sogro (pai de Renan, gerente do cinema) sempre deixava um camarote para nós,” lembra Carmen. 

Entre as lembranças envolvendo o antigo cinema, uma ficou marcada pela tragédia. “Era ele chorando e eu chorando”, conta Carmen sobre aquela madrugada da véspera de Natal de 1994, quando ela e o marido viram, pela janela do apartamento onde vivem até hoje, a cena mais triste do Ópera: o cinema sendo consumido pelas chamas que o destruiriam para sempre. 

Carmen não morou sempre no Centro. Ela nasceu no bairro Santa Catarina, em Caxias do Sul, em 1948. Além de Carmen, os pais, Ada Andreazza e Ângelo Duso, dono de uma olaria, tiveram mais três filhos: Sérgio, Ivo e Júlio. 

Com a venda das terras que eram da avó, a família mudou-se para o Centro, e Carmen começou a estudar no colégio em que, vários anos mais tarde, se tornaria professora: o São José. 

Ao se aproximar dos 15 anos, Carmen estava indecisa se cursava Magistério ou Contabilidade (na época, existia um Ensino Médio direcionado para isso, o que despertou o interesse da jovem, que também era fã dos números). O pai a mandou escolher apenas um. E foi ali que Carmen fez a escolha que traçou o seu futuro. “Decidi ser professora. E eu fiz a escolha certa, Magistério sempre foi o que eu gostava,” conta Carmen. “Eu sou daquelas que lembra até hoje do nome dos professores.”

Mais do que lembrar do nome, Carmen sempre nutriu admiração pelos seus professores, e a escolha por tornar-se uma fez o carinho pela profissão aumentar ainda mais. “Sinto-me realizada sendo professora da gurizada. E até hoje eu sou profe porque eu gosto.”

Quem olha para ela, no entanto, não diz que ela está no Magistério há quase cinco décadas. Carmen parece muito mais jovem do que realmente é, e isso é visível não só na aparência, mas também na invejável disposição para lecionar. 

Carmen fez parte da primeira turma de Geografia da UCS, e sua dedicação como aluna foi recompensada quando, durante o segundo ano de faculdade, um professor a convidou para ser monitora em uma das disciplinas. Depois disso, os convites para lecionar não pararam. Um ano mais tarde, quando tinha apenas 18, foi convidada para dar aula de Geografia no Cristóvão. “Foi aí que eu pensei, ‘Meu Deus, é agora que eu tenho que estudar o máximo possível’. E foi o que eu fiz”. Os primeiros alunos de Carmen tinham entre 14 e 17 anos, ou seja, eram apenas alguns anos mais jovens do que ela - o que contribuía para que o nervosismo aumentasse. “Tanto é que hoje, algumas das minhas amigas são as minhas alunas daquela época.” 

Foi nos corredores do Cristóvão que Carmen reencontrou e se apaixonou por Renan. Os dois já se conheciam desde os sete anos de idade, já que Renan morava em cima do cinema, enquanto Carmen vivia no prédio da frente. Nos anos em que ela estudou no São José, ele estudou no Carmo (em um tempo em que os dois colégios eram destinados à meninas e meninos, respectivamente). Os dois faziam parte do grêmio estudantil e, na década de 60, juntaram esforços dos dois grêmios para criar um coral e uma banda com os dois colégios. Até desfilaram juntos em um 7 de Setembro. Mas Carmen e Renan (que até então eram apenas amigos) perderam contato e passaram alguns anos sem se ver quando ele foi a Porto Alegre fazer faculdade. 

Foi então, ao lecionar no Cristóvão, que certo dia os dois se cruzaram novamente (Renan tinha sido chamado para lecionar Química). Eles começaram a passar tanto tempo juntos que a amizade, naturalmente, se transformou em amor. “Lembro que um dia eu cheguei em casa e disse: ‘Mãe, acho que estou namorando o Renan’”, conta. “Eu me apaixonei pela pessoa que ele é. Amigo e companheiro. Não tem ninguém que consiga brigar com ele. Eu conheci o homem certo.”

Eles se casaram em 1973 e a festa foi feita no salão do Clube Juvenil. “O Juvenil sempre esteve intimamente ligado à história da nossa família,” conta Renan. Os dois filhos do casal, Maurício, nascido em 1976, e Ana Paula, em 1978, sempre comemoraram seus aniversários no clube. Ana Paula, inclusive, debutou lá. A relação com o Juvenil, no entanto, é mais antiga. O tio de Renan foi fundador do clube, e o avô de Carmen, ecônomo do Juvenil. Carmen e Renan foram casal presidente do clube por duas gestões. 

Carmen sempre conseguiu equilibrar os eventos sociais com o emprego e com as tarefas de mãe (e quem é mãe sabe que este é um emprego 24 horas por dia). “Foi muito difícil, tive que me virar.” 

Além do Cristóvão, Carmen também lecionou no São Carlos, Santa Catarina e Cursão (onde hoje Renan é diretor). Ela já tinha uma rotina muito agitada quando, nos anos 90, aceitou uma proposta que a fez sair totalmente da rotina, assumindo a direção da escola Sílvio Dal Zotto. “Foi um desafio!”, conta. “Era uma escola muito pobre, com muitas dificuldades, e aceitei justamente porque queria um desafio.” A escola precisava urgentemente de um novo prédio, mas não havia condição financeira alguma para isso. Carmen conversou até com a secretária da Educação da época (“Tu queres a escola para quando?” perguntou ela. “Para ontem”, respondeu Carmen). Com ajuda do Estado, Carmen conseguiu com que a escola nova fosse construída em um ano. 

No ano 2000, uma das irmãs do São José pediu que ela desse algumas aulas no colégio. “Fui sem muita pretensão, porque elas precisavam de uma ajuda e eu gostava de dar aulas. Mas há 15 anos estou lá,” relata a profe: “Amo de paixão aquele colégio.”

Hoje, Carmen dá aula de Geografia para as 14 turmas do Ensino Médio do São José. E diz que sabe o nome de todos os alunos - ao menos os dos estudantes dos terceiros anos, já que esses ela conhece há mais tempo. Uma das partes favoritas do trabalho, é claro, são as viagens com os alunos, organizadas por ela. “São tantos anos de magistério que tem horas que eu penso que está na hora de parar, dar chance para o pessoal mais novo, mas daí eu penso, ‘O que eu vou ficar fazendo?’”

Mesmo trabalhando, ela ainda consegue visitar frequentemente os dois filhos que moram fora: Maurício, no Rio, e Ana Paula, em Londres. A filha teve uma menina, hoje com dois anos: Julie. “Juju”, como é chamada pela vovó, já é bilíngue, e são delas as fotos e os vídeos que enchem o Ipad de Carmen. Em uma das gravações, exibidas orgulhosamente pela avó, Juju (que, assim como muitas outras meninas, é fã do desenho Frozen), canta Let it go para a câmera. Nem precisa dizer que o vídeo é um dos preferidos de Carmen. 

Mais do que ser ligada à neta, marido, filhos e genros, Carmen era muito próxima da mãe. “Ela era minha amiga, companheira, confidente,” diz, ao contar que cuidou da mãe durante quatro anos após ela ter sido diagnosticada com Alzheimer. “A Carmen se dedicou de corpo e alma quando a mãe ficou doente. Ela sempre foi muito dedicada à família,” conta Renan. 

Ada faleceu este ano, meses antes de completar 99 anos. Recentemente, em 21 de agosto, uma das postagens de Carmen no Facebook homenageou a mãe, que sempre esteve ao seu lado: “O céu está em festa. Minha mãezinha completaria 99 anos. Com certeza a festa está grande junto com as amigas e meu pai,” dizia o post. 

No aniversário de 98 anos, no ano passado, toda a vizinhança do prédio foi convidada para aquela que foi a última festa de aniversário de dona Ada, organizada carinhosamente por Carmen. A professora conta que o pai sempre a ensinou que é preciso ser para os outros o que gostaríamos que fossem para nós. “Então sempre que eu posso ajudar alguém, eu ajudo.” 

E a ajuda ao próximo é sempre recompensada. No caso de Carmen, talvez isso tenha acontecido justamente nos últimos meses, quando ela mais precisou da família e dos amigos, que tanto valoriza: “Eles foram meu apoio”. 

Perfil publicado na Revista Acontece Sul em Setembro de 2015. Link original aqui: