sexta-feira, 28 de março de 2014

A cura da Aids

A ciência já sabe como dar o golpe final no vírus HIV: expulsá-lo do corpo humano. Conheça os bastidores da descoberta médica mais importante dos últimos 25 anos - e as histórias de pessoas que já foram curadas da doença
por Reportagem Alexandre de Santi, Valquíria Vita e Bruno Garattoni
(publicada na revista Superinteressante de Agosto de 2013)
Ele é rudimentar. É uma bolinha minúscula, de 130 nanômetros, com apenas nove genes dentro. O vírus HIV não se compara, nem de longe, à sofisticação de uma célula humana (que tem 20 mil genes) ou mesmo uma bactéria (500 genes). Mas ele mudou a história da humanidade: espalhou pânico, transformou hábitos, arrasou países africanos, matou 30 milhões de pessoas. O homem respondeu criando os antirretrovirais, remédios que contêm a multiplicação do vírus e evitam que o soropositivo morra de Aids. Hoje, 8 milhões de pessoas têm as vidas preservadas por esses medicamentos. Eles não são uma cura, pois não eliminam o vírus - que continua escondido no organismo.
Mas essa história está prestes a dar uma virada dramática. A ciência finalmente descobriu como dar o último passo: arrancar o HIV dos lugares onde ele se esconde no corpo humano. No último ano, vários grupos de pesquisadores comprovaram que é possível expulsar o HIV de seus esconderijos e jogá-lo de volta na corrente sanguínea - de onde ele poderia ser eliminado, livrando completamente o organismo do vírus. Ou seja, cura. Os pesquisadores mantêm cautela, mas a possibilidade tem gerado euforia em setores da comunidade científica. Parece que, depois de passar as últimas décadas tomando dribles do vírus, a humanidade finalmente pode ter descoberto uma forma de encurralá-lo. "Há dois anos, se alguém falasse em cura, seria considerado maluco. Isso era considerado impossível", diz John Frater, imunologista da Universidade de Oxford e um dos líderes do Cherub (Collaborative HIV Eradication of Viral Reservoirs), projeto que reúne cinco universidades inglesas num estudo contra o vírus. "Estou genuinamente entusiasmado", afirma.

A técnica de expulsão do HIV é a inovação científica mais importante, e instigante, das últimas décadas. Mas não é a única novidade na luta contra o vírus. Há pessoas que, por meio de outros procedimentos médicos, foram curadas da Aids. Em alguns casos, elas desenvolveram resistência ao HIV; em outros, o vírus desapareceu do organismo. Você vai conhecer essas histórias a seguir.

ONDE O VÍRUS SE ESCONDE
Como o HIV é muito pequeno, penetra facilmente nas mucosas genitais durante o sexo, e delas vai para a corrente sanguínea, onde encontra sua vítima: as células T, peças centrais do sistema imunológico. O vírus penetra nessas células e as escraviza, transformando-as em máquinas de produzir HIV. É um processo diabolicamente eficiente, que gera 100 bilhões de novas cópias do vírus por dia. No começo, a pessoa não sente nada, no máximo febre e um mal-estar discreto. Mas as células T vão morrendo até que, após alguns anos, o sistema imunológico fica comprometido - e a Aids se instala.

Existem dois tipos de células T: as ativas e as inativas. É como no exército. Alguns soldados estão de prontidão nos quartéis e outros vivem na reserva, podendo ser convocados em caso de emergência. O HIV infecta tanto as células ativas quanto as inativas. O problema é que os medicamentos antirretrovirais só agem nas células ativas. Nas células inativas, que vivem numa espécie de hibernação, o remédio não faz efeito. Isso porque essas células não contêm um montão de HIV dentro. Na verdade, é algo mais assustador ainda.

Elas têm o vírus HIV copiado dentro do próprio código genético. Isso significa que, conforme vão sendo ativadas pelo organismo (um processo natural, que acontece ao longo da vida de todo mundo), começam a se reproduzir - e fabricar enormes quantidades do vírus. É por isso que os medicamentos antirretrovirais não curam a Aids. As células T inativas funcionam como um enorme reservatório de vírus. Ele até vai sendo esvaziado aos poucos, na medida em que as células inativas vão sendo repostas pelo organismo e o vírus vai sendo eliminado pelos medicamentos, mas isso leva uma eternidade: segundo estimativas, pelo menos 60 anos. Ou seja, o portador de HIV tem mesmo de passar a vida toda tomando antirretrovirais (que provocam efeitos colaterais como hipertensão, diabetes e danos aos rins, fígado e ossos).

A menos que exista uma forma de esvaziar à força os reservatórios de HIV.

Essa possibilidade começou a se desenhar em outubro de 2006, quando o governo americano autorizou a venda de um novo medicamento, chamado vorinostat. Esse remédio foi criado para tratar o linfoma cutâneo de células T, um câncer no sistema imunológico. Esse câncer se manifesta na forma de lesões na pele, mas se origina no sangue. Ele é tratado com quimioterapia. Mas a quimioterapia só funciona bem com tumores que se multiplicam bastante (porque ela age na reprodução celular). E o linfoma cutâneo não é assim. Por algum motivo, ele faz o corpo aumentar a produção de histona deacetilase (HDAC), um tipo de enzima que faz as células pararem de se reproduzir. E isso reduz o efeito da quimioterapia. O vorinostat bloqueia a ação dessa enzima, colocando o câncer de novo em estado de multiplicação - e vulnerável à quimiotepia. Atiçar o câncer é uma estratégia arriscada. Por isso, o vorinostat só é usado em casos graves, nos quais dá resultado (70% dos pacientes respondem a ele).

A infecção - e o caminho da cura
O segredo está em acordar células dormentes, onde o HIV fica escondido

1. Contaminação
O HIV entra no organismo. Ele se instala nas células T, que são responsáveis por coordenar a ação do sistema imunológico. Há dois tipos de célula T: ativa e inativa. O vírus invade ambos os tipos.

2. Invasão do DNA
O HIV entra na célula e se infiltra no núcleo dela, onde está o DNA. As células ativas se multiplicam - e, com isso, multiplicam o HIV.

As células inativas não se multiplicam. Graças à ação de uma enzima, elas ficam dormentes (e o vírus também).

3. O tratamento tradicional
Os medicamentos antiretrovirais, usados hoje, conseguem bloquear a progressão do HIV - e controlar a Aids. Mas não agem nas células inativas, onde o vírus fica escondido. Se a pessoa parar de tomar os antirretrovirais, o HIV "escondido" acorda. E a Aids volta.

4. A nova tática
Um novo tipo de medicamento é capaz de fazer as células inativas acordarem: e botarem para fora o HIV que trazem escondido. O vírus é jogado na corrente sanguínea.

5. A eliminação
Os antirretrovirais agem sobre o HIV, permitindo que ele seja eliminado.Os reservatórios vão sendo esvaziados, até não restar mais vírus.

Mais tarde, alguns pesquisadores descobriram que o vorinostat também tinha outro efeito: ele desperta as células T adormecidas. E isso é valiosíssimo no combate ao HIV. Porque quando essas células acordam, elas começam a se reproduzir e jogar vírus no sangue - onde ele fica vulnerável à ação dos remédios antirretrovirais. O HIV é eliminado, as células T morrem e, se esse processo for repetido por tempo suficiente, é possível eliminar todas as células infectadas - e sacar o HIV do organismo.
David Margolis, da Universidade da Carolina do Norte (EUA), foi o primeiro cientista a testar esse procedimento. "Tive a ideia de acordar o HIV e empurrá-lo para fora do corpo, permitindo a erradicação do vírus", diz. Depois de obter resultados positivos em testes de laboratório, ele ficou três anos pedindo permissão às autoridades de saúde americanas para fazer um estudo em humanos. O vorinostat tem efeitos colaterais, como fadiga, diarreia, hiperglicemia e anemia. Em casos raros, pode levar à formação de coágulos no sangue, o que é perigoso. Mas o grande receio era quanto ao vírus da Aids. Afinal, acordar células dormentes e estimulá-las a produzir HIV envolve risco. E se o vírus surgisse com alguma mutação, e os medicamentos antirretrovirais não fizessem efeito contra ele? Os pacientes seriam inundados pelo HIV, e morreriam.
Mesmo assim, Margolis obteve autorização para fazer o teste em oito portadores de HIV, que receberam vorinostat. Os resultados foram publicados em 2012 - e reanimaram o interesse da comunidade científica. Uma única dose de vorinostat aumentou em mais de quatro vezes a quantidade de vírus no sangue dos pacientes. Ou seja, a tese se comprovou. Funcionou. O remédio conseguiu o que era considerado impossível: expulsar o HIV de seus reservatórios (e fez isso sem provocar efeitos colaterais relevantes). Mas foi um estudo de breve duração. Agora, Margolis está realizando uma nova experiência, na qual os pacientes recebem mais doses de vorinostat, durante mais tempo.

Pelo menos um estudo, feito pela Universidade de Aarhus (Dinamarca) em parceria com a Universidade do Colorado (EUA), comprovou o mesmo efeito em células humanas testadas em laboratório. "Ainda temos um longo caminho, mas acredito que a cura para o HIV seja alcançável", diz Ole Søgaard, líder do estudo dinamarquês. Søgaard está finalizando um novo estudo, desta vez dando o remédio diretamente a pacientes, e publicará os resultados nos próximos meses. Pesquisadores da Universidade de Monash, na Austrália, também estão testando o vorinostat e devem publicar resultados em breve. A equipe pioneira, de David Margolis, continua aperfeiçoando a técnica - em estudos que envolveram cientistas da Universidade da Califórnia e uma pesquisadora da multinacional farmacêutica Merck.

Ainda há dúvidas sobre o procedimento. Qual a dose ideal do medicamento? Por quanto tempo? Ele é o remédio ideal, ou surgirão outros? "É como o AZT, que foi a primeira droga da sua classe (antirretroviral). Talvez a gente encontre drogas melhores, ou resultados melhores combinando essa droga com outras", diz Margolis.

Também há um dilema ético envolvido. Como convencer um paciente que toma antirretrovirais, e por isso está com o HIV sob controle, a participar de um estudo que envolve risco de acordar uma doença letal? "Os métodos que temos hoje são eficazes, relativamente seguros, bem tolerados e não tão caros", afirma Daniel Kuritzkes, chefe do AIDS Clinical Trials Group (ACTG), um dos maiores grupos de pesquisa na área.

Além disso, um paciente curado pode ser facilmente reinfectado - basta fazer sexo sem proteção com alguém que tenha HIV. O ideal mesmo seria criar uma vacina contra o vírus. Infelizmente, o vírus conseguiu burlar todos os esforços nesse sentido. Há várias razões que dificultam o desenvolvimento de uma vacina. A primeira é a intensa variabilidade do vírus. Embora o HIV seja dividido em somente dois tipos, 1 e 2 (que têm origem em primatas diferentes), ele sofre constantes mutações dentro de cada tipo. Estima-se que a capacidade de mutação do HIV seja mil vezes maior que a do genoma humano. Isso torna o HIV imprevisível e complica bastante as coisas. Como preparar o corpo para se defender se ninguém sabe exatamente como o vírus pode se comportar? Mesmo assim, os esforços seguem: em maio, um novo teste de vacina foi anunciado por pesquisadores do Imperial College, de Londres, que farão um estudo em Ruanda e Nigéria e divulgarão os resultados em 2015.

Mas, mesmo sem uma vacina, e com a técnica de desinfecção ainda em testes iniciais, já existem pessoas que chegaram lá - foram curadas do HIV.

Nós e eles
A longa história da Aids na Terra

1959
Surgem os primeiros registros de homens morrendo devido a infecções de origem inexplicável. Um deles, que morreu no Congo, teve tecidos do seu corpo preservados e analisados nos anos 90. Eles continham HIV.

1981
O governo dos EUA publica um relatório descrevendo os casos de cinco homens homossexuais de Los Angeles, que tinham uma série de infecções raras. É o primeiro registro oficial da doença. Duas das vítimas morreram antes mesmo da publicação do artigo.

1983
Em abril, o Center for Disease Control (CDC), dos EUA, estima que dezenas de milhares de pessoas estejam infectadas pela doença. Ela ganha o nome de Aids (síndrome de imunodeficiência adquirida, em inglês).

1984
O pesquisador Robert Gallo, do Instituto Nacional do Câncer dos EUA, afirma que a Aids é causada por um vírus.

1985
O ator americano Rock Hudson morre de Aids. É a primeira grande celebridade a ser vitimada pela doença, que já tem casos em todo o planeta.

1986
O Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus batiza o causador da Aids de Human Immunodeficiency Virus (HIV), ou vírus da imunodeficiência humana.

1987
O governo americano aprova o uso da zidovudina (AZT), primeiro medicamento a combater o HIV.

1989
Magro e abatido, o cantor Cazuza anuncia publicamente que está com Aids. Morreria em 1990 depois de uma agonia que expôs a fragilidade das vítimas.

1991
O laço vermelho se torna o símbolo da luta contra a Aids. Magic Johnson, estrela do basquete dos EUA, anuncia que é soropositivo. O cantor Freddie Mercury, do Queen, morre vítima da doença.

1993

O filme Filadélfia, em que Tom Hanks interpreta um advogado com HIV, chega aos cinemas. O bailarino Rudolf Nureyev e o tenista Arthur Ashe morrem de Aids.

1994
A epidemia atinge 1 milhão de casos no mundo.

1995
Surge a terapia antirretroviral altamente ativa (highly active antiretroviral therapy - HAART), um coquetel de drogas que impede a progressão do HIV.

1997
O número de pessoas infectadas chega a 30 milhões no mundo.

2000
A busca por uma vacina se torna prioridade global na pesquisa contra o HIV.

2003
Cientistas comprovam que o HIV veio dos chimpanzés. O laboratório VaxGen, um dos que desenvolve vacinas, anuncia que os testes em humanos falharam.

2007
Médicos anunciam que um paciente está livre do HIV. Timothy Brown, conhecido como Paciente de Berlim, não registra a presença do vírus no corpo desde então.

2009 a 2013
São publicados os primeiros estudos sobre eliminação de reservatórios do HIV, apontando um caminho para a cura. A busca por vacinas continua.

OS PRIMEIROS CURADOS
Em 1995, o americano Timothy Ray Brown descobriu que era soropositivo. Logo começou a tomar os medicamentos antirretrovirais e estava indo bem, até que em 2007, quando estava morando na Alemanha, ele começou a se sentir muito fraco. E descobriu que estava com leucemia, um câncer que ataca as células T (pois é, justo elas). Seu médico, o oncologista Gero Hütter, se lembrou do seguinte: no norte da Europa, uma em cada cem pessoas é imune ao vírus da Aids. Devido a uma mutação genética, elas não produzem uma proteína chamada CCR5. E sem essa proteína, o vírus da Aids não consegue entrar nas células.

Como Timothy estava com leucemia, teria de receber um transplante de medula óssea. Nesse tipo de transplante, o sistema imunológico do paciente é morto (por meio de quimioterapia) e substituído pelas células do doador. O médico teve a ideia de usar, como doadora, uma pessoa que fosse imune ao vírus da Aids. Dessa forma, quem sabe, poderia acertar dois alvos com um só tiro: curar Timothy da leucemia e do HIV.

O primeiro transplante não teve o efeito esperado, e a leucemia voltou. Timothy aceitou se submeter a um segundo. Funcionou. Ele ficou um ano no hospital, teve várias complicações de saúde, mas se tornou o primeiro humano na história a ser curado do HIV. Parou de tomar os antirretrovirais, e o vírus nunca voltou. Timothy ficou conhecido como o "Paciente de Berlim". Em julho deste ano, dois casos semelhantes ao dele foram apresentados na conferência da International Aids Society. Mas, nesses casos, os transplantes foram feitos há pouco tempo e ainda é cedo para dizer que o HIV não retornou.

Seja como for, transplante de medula é uma técnica complexa, que depende de fatores muito específicos - o procedimento de Timothy tinha apenas 5% de chance de sucesso. "Esse paciente ganhou na loteria", afirma Caio Rosenthal, infectologista do hospital Emílio Ribas, de São Paulo. Além de pouco eficaz, o procedimento é muito arriscado. "A pessoa que vai receber o transplante de medula fica completamente sem defesas [imunológicas] durante um período", explica Dirceu Greco, diretor do departamento de DST e Aids do Ministério da Saúde.

Além das pessoas que não produzem a proteína CCR5, há outro tipo de gente resistente ao HIV: os chamados controladores de elite. Eles são infectados pelo vírus, mas não desenvolvem Aids. "De todas as pessoas infectadas, 5% são chamados progressores lentos. Eles têm carga viral baixa e só vão ficar doentes muitos anos depois. E, dentro desses 5%, há também uma porcentagem de controladores de elite, que apresentam carga viral há mais de dez anos e conseguem viver sem remédios", explica Breno Riegel, infectologista do Hospital Conceição, de Porto Alegre, e colaborador de estudos internacionais - incluindo uma pesquisa com antirretrovirais que foi considerada a mais importante do mundo em 2011 pelo jornal científico Science.

Para ser um controlador de elite, ou uma pessoa imune ao HIV, é preciso nascer com determinadas mutações genéticas. Mas também existe gente que se torna controladora de elite. Em março deste ano, pesquisadores do Instituto Pasteur, de Paris, apresentaram um estudo demonstrando a cura funcional de 14 pacientes franceses portadores do HIV. A palavra funcional significa que eles ainda carregam o vírus, mas não desenvolvem a Aids - mesmo tendo parado de tomar medicamentos antirretrovirais. Esses pacientes são identificados pela sigla Visconti, que vem de Viro-immunological Sustained Control After Treatment Interruption (Controle Viro-imunológico Sustentado Após a Interrupção do Tratamento). O líder do estudo, Asier Sáez-Cirión, destaca uma característica importante desses pacientes. Quando se descobriram infectados pelo HIV, na década passada, eles logo passaram a tomar o coquetel antirretroviral. Começaram a tomar os remédios no máximo 70 dias depois da contaminação. E essa rapidez ajudou muito. "Tratando desde cedo, você limita a entrada de vírus nos reservatórios (as células T inativas)", diz Sáez-Cirión. E isso teoricamente permite que, depois de alguns anos tomando o remédio, seja possível parar com ele - e mesmo assim não desenvolver Aids. Na prática, as coisas costumam ser diferentes. "Quando a pessoa chega ao médico, na maioria das vezes ela já está soropositiva há anos, e daí o tratamento já não é mais tão eficiente", explica Rosenthal. Um paciente que carrega o vírus há dez anos, por exemplo, já está com danos graves ao sistema imunológico.

Os pacientes do grupo Visconti tomaram os remédios durante três anos até que interromperam o tratamento. Eles conseguiram se manter saudáveis mesmo sem os antirretrovirais e estão assim há cerca de sete anos. Um deles está há uma década sem a medicação. Sáez-Cirión se refere a essa cura como "estado de remissão do vírus" - pois o HIV continua presente no corpo, ainda que não provoque o desenvolvimento da Aids. "Quando vimos os resultados, percebemos que isso pode ser um grande passo para a luta contra o HIV. Ficamos muito emocionados. Queremos reforçar a mensagem de que o tratamento precoce é importante", diz Sáez-Cirión.

O tratamento precoce foi responsável por um caso ainda mais impressionante. Em março deste ano, cientistas americanos revelaram que um bebê (que não teve o nome nem o sexo divulgados) havia sido curado do HIV. Se uma grávida sabe que tem o vírus da Aids e recebe tratamento adequado, com medicamentos antiretrovirais, há 96% de chance de que o bebê nasça sem o vírus. Mas, neste caso, não foi assim. A mãe da criança, que não havia recebido atendimento pré-natal, chegou ao hospital já em trabalho de parto. Um teste feito na hora detectou que ela tinha HIV. Era tarde demais para tratar a mãe e impedir que transmitisse a doença para o filho.

Então os médicos fizeram o parto e levaram o recém-nascido para a pediatra Hanna Gay, da Universidade do Mississipi. Ela decidiu tratar o bebê com altas doses de antiretrovirais, que foram mantidos durante os primeiros 18 meses da vida da criança. A partir daí, a mãe sumiu e não veio mais pegar os remédios. Ela ficou dez meses sem aparecer, e o bebê não recebeu nenhum tratamento durante esse período. O que era um caso de relapso materno acabou resultando numa descoberta científica incrível: mesmo sem nenhum remédio, o HIV não retornou. Não havia mais vírus no sangue da criança. Aparentemente, o tratamento ultraprecoce evitou que o HIV entrasse nos reservatórios (mesma coisa que teria acontecido com os pacientes franceses).

Humanos x HIV
Veja quem já está vencendo a doença - e como

Terapia atual Como é? - O portador de HIV recebe uma combinação de medicamentos (o chamado coquetel de antiretrovirais) que impede a multiplicação do vírus. A quantidade de HIV no sangue despenca, chegando a níveis muito baixos.
A pessoa desenvolve Aids? - Não.
Pode transmitir o vírus? - Sim. O HIV permanece escondido no organismo.
Terapia de próxima geração Como é? - O portador de HIV recebe um medicamento que acorda as células onde o vírus estava escondido. Em seguida, toma o coquetel de antiretrovirais - que impedem a multiplicação do HIV. Com o tempo, isso pode levar à eliminação total do vírus do organismo.
Pode transmitir o vírus? - Em tese, não. Mas a técnica ainda está em fase experimental.
Geneticamente imune Como é? - Existem pessoas que nascem com uma mutação na proteína CCR5 - e isso impede o HIV de entrar nas células.
Pode transmitir o vírus? - Há controvérsias. Embora o HIV não consiga se multiplicar, é possível que algumas cópias dele se instalem no organismo - o suficiente para infectar alguém.
Supercontrolador Como é? - É uma pessoa cujo sistema imunológico consegue controlar o HIV, mesmo sem a ajuda de remédios. Ainda não se sabe o que torna uma pessoa controladora de elite. É o caso dos pacientes franceses do grupo Visconti.
Pode transmitir o vírus?
- Sim.

Bebê de Mississipi Como é? - O filho de uma mulher HIV-positiva começou a receber o coquetel de antirretrovirais logo após o nascimento. O vírus sumiu.
Pode transmitir o vírus? - Em tese, não. O bebê está aparentemente curado, com carga viral indetectável.
Paciente de Berlim Como é? - Recebeu um transplante de medula óssea de um paciente que tinha CCR5 mutante, ou seja, era imune ao HIV. Com isso, ele também adquiriu imunidade ao vírus.
Pode transmitir o vírus? - Em tese, não. O HIV desapareceu do organismo.

REENGENHARIA GENÉTICA
A expulsão do vírus, o tratamento ultraprecoce, as vacinas e os transplantes não são as únicas frentes de pesquisa contra o HIV. Existe mais uma, que consegue ser ainda mais ousada: modificar geneticamente o corpo humano para torná-lo resistente ao vírus. A técnica foi idealizada em 2008 e está sendo desenvolvida pela Universidade do Sul da Califórnia em parceria com a empresa de biotecnologia Sangamo BioSciences. Primeiro, obtém-se uma amostra de células T do paciente (coletando um pouco de sangue). Em seguida, usando técnicas de manipulação genética, essas células são alteradas. Elas passam a produzir uma versão deficiente da proteína CCR5 - aquela proteína essencial para o vírus da Aids. As células geneticamente modificadas são reinjetadas na pessoa, se multiplicam e aos poucos vão substituindo as células T normais. E o paciente adquire imunidade ao HIV. Essa é a ideia.

A técnica já foi testada em algumas pessoas. A mais famosa delas é um homem, identificado apenas como "Paciente de Trenton" (o nome vem da cidade onde mora, em Nova Jersey). Ele recebeu as células modificadas e parou de tomar os medicamentos anti-HIV. Num primeiro momento, a quantidade de vírus em seu sangue disparou. Mas em seguida despencou, até zerar. O HIV sumiu. "Eu me senti um super-homem", disse o paciente ao jornal New York Times. O resultado é animador, mas ainda não pode ser considerado cura. O estudo durou pouquíssimo tempo, apenas três meses (depois disso, o homem voltou a tomar os antirretrovirais, de forma preventiva). Seria preciso esperar mais para assegurar que o vírus não iria voltar. Além disso, o Paciente de Trenton possuía uma mutação genética que debilitava um pouco a proteína CCR5. Ele não era imune ao HIV, mas essa mutação pode ter aumentado a eficácia do tratamento - que não funcionou tão bem com os outros pacientes. Há um novo teste em curso, com nove soropositivos, e os resultados serão publicados até o final do ano.

Há um detalhe especialmente intrigante. No Paciente de Trenton, apenas 13,5% das células T adquiriram resistência ao vírus durante o estudo. Todas as demais continuaram vulneráveis. Mas essa mudança, modesta, já foi suficiente para que o organismo virasse o jogo contra o HIV e o eliminasse completamente do sangue. Talvez seja possível estender os limites do corpo humano - e, com uma pequena ajuda, torná-lo capaz de vencer a Aids. Talvez as drogas que expulsam o vírus de seus reservatórios funcionem cada vez melhor, e se tornem lugar-comum daqui a alguns anos. Talvez os tratamentos ultraprecoces livrem milhões de pessoas do vírus. Mas notícias promissoras não significam que devamos baixar a guarda. Pelo contrário. A prevenção e o sexo seguro (com camisinha) continuam sendo essenciais. Para de fato vencer a Aids, a humanidade terá de apelar para as armas mais poderosas que existem: a inteligência e o bom senso. Afinal, se o vírus pode evoluir, nós também.

O primeiro curado
O americano Timothy Ray Brown, 47, recebeu um transplante experimental de medula óssea - e, por conta disso, seu corpo se livrou do vírus HIV. Aqui, ele conta como foi o processo, e como vive hoje em dia.

O transplante, que você recebeu em 2009, era um procedimento arriscado, que poderia levar à morte. Por que você aceitou?
Quando os médicos começaram a tentar me convencer, eu disse não, porque o vírus HIV estava em remissão (sob controle). Mas eu tive leucemia, e tive de fazer o transplante por causa dela. Não fiz por causa da Aids; fiz por causa da leucemia.

E como você se sentiu quando descobriu que estava curado do HIV?
Eu não acreditei muito, até que o Dr. (Gero) Hütter publicou o caso no New England Journal of Medicine (em 2009). Aí eu pensei: ok, se outras pessoas acreditam que aconteceu, então eu vou acreditar. Se cientistas estavam acreditando, então era verdade. Me senti aliviado. Isso mudou a minha vida.

Você se sente curado?
Eu definitivamente me sinto curado. Meu corpo foi analisado da cabeça aos pés, fiz inúmeros exames de sangue, e não há sinal do HIV no meu corpo.

Como é a sua rotina médica?
Quando eu estava morando em São Francisco, ia ao médico pelo menos uma vez por mês. Mas, desde que me mudei para Las Vegas (onde administra uma fundação de luta contra a Aids), só vou ao médico se tiver necessidade. Mas eu continuo participando de estudos que possam ajudar mais pessoas a serem curadas.

O placar do jogo
Números da epidemia que mudou o mundo

- 26% da população na Suazilândia tem o vírus. É o país com maior incidência de contaminação.

- Em Bangladesh, menos de 0,1% da população está infectada. É a menor proporção.

- Mais de metade dos infectados são mulheres, mas o problema é muito pior no sul da África, onde mulheres representam 58% dos infectados.

- Até 2015, o orçamento estimado para combater a Aids no mundo inteiro é de US$ 24 bilhões anuais.

- Somente nos EUA, foram gastos US$ 344 bilhões no combate à Aids desde 1981.

- 30 milhões de pessoas já morreram de Aids

- Cerca de 15 milhões de pessoas têm acesso a tratamento com antirretrovirais.

- Nas Maldivas, menos de 100 pessoas possuem o vírus. É o país de menor incidência.

- Na África do Sul, 5,6 milhões de pessoas estão infectadas. É o líder mundial.

- 34 milhões estão infectadas no mundo.


PARA SABER MAIS Administration of vorinostat disrupts HIV-1 latency in patients on antiretroviral therapy.
D.M. Margolis e outros, Nature, 2012.

Histone Deacetylase Inhibitors for Purging HIV-1 from the Latent Reservoir.
Thomas Rasmussen e outros, Molecular Medicine Journal, 2011.

Expression of Latent HIV Induced by the Potent HDAC Inhibitor Suberoylanilide Hydroxamic Acid.
D.M. Margolis, Daria Hazuda e outros, Aids Research and Human Retroviruses, 2009.

Establishment of HIV-1 resistance in CD4+ T cells by genome editing.
Elena E. Perez e outros, Nature Biotechnology, 2008.





link original: 
http://super.abril.com.br/saude/cura-aids-762959.shtml

O Facebook pode ser legal =)

COMO A ISLÂNDIA FEZ UMA NOVA CONSTITUIÇÃO USANDO O FACEBOOK

Multidão protesta diante do Parlamento da Islândia: a crise financeira de 2008 bateu duro no país, mas os islandeses reagiram às medidas de arrocho propostas por organismos como o FMI (Foto: therightperspective.org)






Entrevista concedida a Valquíria Vita, publicada em edição impressa da revista Superinteressante em agosto de 2013


CUTUCARAM A CONSTITUIÇÃO 




Enquanto no Brasil manifestantes saíram do Facebook e foram para a rua, na Islândia eles saíram às ruas e depois voltaram para reescrever a Constituição no próprio Facebook.

O cientista político islandês Eiríkur Bergmann conversou com a Super sobre o processo.

Até cinco anos atrás, a Islândia é que parecia estar deitada em berço esplêndido: todo mundo sabia ler, 95% da população tinha acesso à internet, a economia ia muito-bem-obrigado e não existia desemprego. Só que durante a crise financeira que tomou conta do mundo em 2008, o pequeno país nórdico (pequeno mesmo, 82 vezes menor que o Brasil) passou por uma barra tão pesada que a situação chegou a ser descrita pelo FMI como uma “crise financeira de proporções catastróficas”.

Os maiores bancos da região faliram e a moeda local sofreu uma desvalorização de 80% em relação ao euro. A taxa de desemprego aumentou nove vezes, a dívida do país chegou a 900% do PIB e, bom, as pessoas começaram a empobrecer.

Os islandeses deram uma de argentinos e foram às ruas protestar batendo panelas quando o governo quis aplicar medidas exigidas pelo FMI em troca de uma ajuda financeira bilionária. Bateram tanta panela que o primeiro-ministro foi obrigado a renunciar, e novas eleições foram convocadas. Mesmo assim, eles não ficaram satisfeitos.

De repente, os protestos já não eram mais contra as medidas de austeridade, mas contra tudo que parecia errado no país (soa familiar?). No caso da Islândia, o que o povo realmente queria era uma nova Constituição. Foi aí que o Facebook entrou na jogada.




Erikur: "Acredito que organismos participativos são importantes para aumentar processos democráticos representativos tradicionais, trazendo a tomada de decisões de volta para as pessoas. As mudanças estão vindo, quer você goste ou não, concorde ou não"

A rede social foi a principal plataforma escolhida pelos islandeses para recolher contribuições para a nova Constituição. O processo foi mediado por um conselho de 25 voluntários apartidários, que postava os textos no Facebook depois de cada reunião para que o resto da população pudesse debater a respeito.

E foi assim que a Islândia ficou conhecida mundialmente por ter elaborado a primeira Constituição crowdsourced da história. O texto final passou por referendo e foi aprovado por dois terços dos islandeses em 2012. Está até agora aguardando aprovação do Parlamento (Brasil e Islândia também têm suas semelhanças), mas já serviu de exemplo para destacar a força das redes sociais na construção de uma nova forma de democracia.

Um daqueles 25 conselheiros, o cientista político Eiríkur Bergmann, diretor do Centro de Estudos Europeus da Bifröst University, enfrentou uma viagem de 24 horas da Islândia para o Brasil para fazer uma palestra sobre o futuro dos Estados democráticos. Aproveitou para falar sobre o uso da tecnologia pela democracia e para dar sua opinião sobre a viabilidade de um processo parecido por aqui.

Como vocês receberam sugestões para a nova Constituição?

Por alguma razão, todos na Islândia estão no Facebook, então esse foi o principal portal. Criamos uma página onde as pessoas podiam mandar sugestões e comentar, e nos dividimos em comitês para analisar os assuntos.

As pessoas também mandaram sugestões pelo Twitter, e-mail, correspondências, ligaram e vieram pessoalmente até nós. A decisão que tomamos foi que não importava de que maneira elas viriam, só queríamos que participassem. Se quisessem mandar um pombo com uma mensagem, podiam fazer isso também. Recebemos 3.600 sugestões formais.

Como foi tomada a decisão de criar um canal no Facebook para que a população se manifestasse?

Existiram muitos motivos para isso. Um foi que existia alguma animosidade entre o conselho eleito e o Parlamento, e sabíamos que isso poderia ser uma estratégia para ter o apoio do público. E como ter o envolvimento do público? Botando no Facebook.

Entre os 25 conselheiros representantes, houve quem dissesse que devíamos desligar o celular, fechar a internet e apenas escrever o texto e trazer ao público quando estivesse completo. Mas decidimos fazer completamente o oposto.

Nosso time técnico cuidou de todas as portas de entrada de opinião. Convocamos toda a população a participar. Postamos até nossos telefones particulares para as pessoas ligarem se quisessem. Postávamos todo o nosso trabalho online imediatamente para as pessoas debaterem. E desse debate tirávamos a vontade do público e integrávamos no próximo round de postagens.




Na Islândia, país conhecido por sua natureza exuberante e peculiar, todo mundo sabe ler, e 95% da população tem acesso à internet (Foto: Orsolya e Erlend Haarberg / National Geographic)

E as pessoas levaram isso a sério?

Essa foi a parte maravilhosa disso. Normalmente, na Islândia, temos discussões acaloradas sobre tudo, as pessoas atacam as gargantas umas das outras nos comentários, temos discursos muito negativos e comentários muito duros e pessoais.

O que as pessoas já postaram sobre mim, meu deus! E isso acontece com todo mundo. Mas, com esse assunto, por alguma razão, ninguém fez comentários negativos. A questão é que todos queriam causar impacto. Quando você convida as pessoas, tem de escutar o que elas têm a dizer.

E elas levaram a sério porque sabiam que o que dissessem também seria levado a sério. Deixamos claro para elas que seus comentários realmente importavam, e como resultado tivemos comentários muito mais responsáveis.

Quando você dá poder às pessoas, e diz a elas que suas vozes realmente importam, elas tomam mais cuidado com o que dizem. Eles sentiram que estavam participando de verdade, não apenas assistindo à recuperação da Islândia. Isso teve efeito de cura na sociedade. Foi um jeito construtivo de avançar, em vez de ficar nos protestos.

Se o povo não tivesse sido parte desse processo, você acha que a Constituição teria sido diferente?

Sim. Por exemplo: capítulos importantes sobre recursos naturais e direitos humanos sofreram grande impacto com a participação do público. Se a Constituição tivesse sido criada pelos parlamentares, teria sido mais conservadora.

O quanto a crise econômica que afetou a Islândia influenciou esse movimento?

Em 2008, a Islândia foi a primeira a entrar em colapso. Nossos bancos foram à falência em apenas uma semana. Isso foi um choque e houve um grande senso de crise. E crises abrem espaço para discursos políticos, fazem surgir novos pensamentos. Além disso, tivemos uma sociedade receptiva, homogênea o suficiente para compreender algo assim, e tecnológica o bastante para que as pessoas participassem.

Além da crise, o que mais colaborou para que esse projeto desse certo na Islândia?

Foi uma vantagem sermos um país pequeno, onde é fácil conseguir que as pessoas se envolvam. Somos poucos, mas o suficiente para causar impacto, se quisermos. Fora isso, mais de 95% da população tem internet e 100% é alfabetizada. Os islandeses são educados, têm acesso à mídia.

Uma iniciativa como essa poderia funcionar em um país maior?

O processo aconteceria de um jeito diferente, mas poderia funcionar, sim. Acho que o que vale é o convite para que as pessoas participem, que é quase mais importante do que elas participarem de fato. Também é fundamental saber que as necessidades são diferentes em lugares diferentes. Você não pode forçar uma mudança em uma sociedade que não precisa dela. Tem de haver uma demanda por mudanças.

Isso daria certo no Brasil?

Sim, talvez mais certo do que em outros países, porque vocês têm uma herança muito interessante de participação popular. Claro que a maioria não participaria, mas uma parte, sim. Eu acredito que esse tipo de exercício vai ser cada vez mais comum.



"Na Islândia, temos discussões acaloradas sobre tudo, as pessoas atacam as gargantas umas das outras nos comentários, temos discursos muito negativos e comentários muito duros e pessoais" (Foto: Getty Images)

"Na Islândia, temos discussões acaloradas sobre tudo, as pessoas atacam as gargantas umas das outras nos comentários, temos discursos muito negativos e comentários muito duros e pessoais" (Foto: Getty Images)



Há quem chame essa de uma nova forma de democracia direta por meio da internet. Você concorda?

A nova Constituição foi esboçada por 25 pessoas, que receberam sugestões e impactos do público em geral. Então houve um filtro, isso não é democracia direta.

Mas o senhor acredita que esse é o caminho? Transformar pela internet?

Estamos em um ponto de virada no que diz respeito ao desenvolvimento da democracia. Agora, estamos nos movendo para uma forma mais participativa de democracia.

Eu sinto que essa é a primeira vez que a tecnologia pode ser usada democraticamente. Temos essa tecnologia há anos, mas não tínhamos uma população pronta para isso. Até agora. Quando começarmos a ver esses exemplos se acumulando, vai ser mais fácil dar um passo para frente e realmente integrar mecanismos participatórios na tomada de decisão.

Eu acredito que organismos participativos são importantes para aumentar processos democráticos representativos tradicionais, trazendo a tomada de decisões de volta para as pessoas. As mudanças estão vindo, quer você goste ou não, concorde ou não.

O desafio é se organizar para que essas mudanças sejam construtivas. Não sabemos o que vai acontecer. E isso pode ser usado para o bem ou para o mal.


link original: http://super.abril.com.br/cotidiano/cutucaram-constituicao-759921.shtml

quarta-feira, 19 de março de 2014

LADO B _ Léa Fernandes Signori

Perfil publicado na Revista Acontece, de Caxias do Sul, em março de 2014. Link original aqui 






Léa Fernandes Signori
Por Valquíria Vita

A psicanalista que sempre encontra tempo para os 70 idosos do Lar da Velhice São Francisco de Assis



Léa Fernandes Signori ainda se lembra da data. Era 27 de setembro. Nesse dia, um acontecimento antes impensável ocorreu no Lar da Velhice São Francisco de Assis. Dois idosos que haviam se conhecido e começado a namorar no Lar, se casaram.
O casamento só aconteceu graças à Léa, psicanalista e presidente do Lar da Velhice. João tinha 84 anos, Olinda, 88. Os dois, já viúvos, haviam procurado Léa há algum tempo e feito o pedido que a presidente nunca tinha recebido. Naquele dia, Léa não apenas autorizou e organizou todo o casamento, que ocorreu na capela do Lar, como foi madrinha dos noivos. "A noiva quis buquê, vestido e tudo", conta Léa, que a ajudou a se vestir em um dos quartos do asilo, garantindo que a porta estivesse fechada para que o noivo não a visse antes do tempo. Foi enquanto se vestiam que Olinda largou uma pergunta que pegou Léa desprevenida: "Onde vai ser a nossa lua de mel?". Léa não tinha pensado nisso. Foi, talvez, o único detalhe do casamento que ela havia esquecido de planejar.
Imediatamente, Léa ligou para um hotel de Caxias, que emprestou um quarto para a lua de mel de João e Olinda (que durou uma noite). Léa também arranjou tudo para que a kombi do Lar da Velhice levasse os dois até lá depois do casamento, e os trouxesse de volta na manhã seguinte. "Essa talvez tenha sido a situação mais hilária que me aconteceu", conta ela.
Três anos depois do inédito casamento, João ficou muito doente. Olinda o cuidou com tanto carinho que até dava comida em sua boca todos os dias. Quando finalmente não teve mais forças, João faleceu, sucumbindo à doença e à idade. Uma semana depois, após não suportar mais a dor da perda, Olinda também faleceu.
São poucas as pessoas que podem contar uma história como essa. Léa é uma delas. Há 25 anos ela convive toda a semana com idosos que compartilham com ela seus sentimentos e suas histórias de vida. Algumas são de se alegrar, mas muitas outras são de fazer amolecer o coração até dos mais fortes. Tantos anos trabalhando tão próxima dos velhinhos ensinaram a Léa algumas lições. Uma delas é que a morte é sim inevitável e, justamente por isso, o que importa é fazer o bem pelas pessoas enquanto elas ainda vivem. E essa parece ser a missão de vida dela: tornar os últimos anos de vida desses velhinhos, que já não estão mais na companhia de suas respectivas famílias, o mais agradável possível. "Claro que a gente sofre, a morte sempre é difícil. Mas eu prefiro ver pelo lado de que precisamos ser atenciosos e suprir essas necessidades enquanto ainda é tempo. Nem que essa necessidade seja uma blusinha, uma tiara", explica Léa.
Essa relação de amor e voluntariado com o Lar da Velhice São Francisco de Assis começou quando Léa era estagiária de psicologia comunitária, há 25 anos. "Vinte e cinco anos é uma vida", brinca. Entre todos os lugares que ela poderia ter feito o estágio, a jovem psicóloga optou pelo Lar da Velhice, já que desde que tinha 5 anos de idade gostava de conversar com pessoas idosas.
Durante a faculdade, na Universidade de Caxias do Sul, ela já sabia que quando concluísse o curso, dedicaria seu tempo a trabalhar com os velhinhos. E foi, de fato, o que aconteceu. Léa só não imaginava que a experiência transformaria sua vida.
Após a especialização de Psicanálise no Centro de Estudos Lacaneanos, em Porto Alegre, Léa entrou para o Lar, e hoje já está há 13 anos à frente da instituição como presidente, trabalho que também faz voluntariamente.
Ela vai até a casa de repouso todas as terças e quintas-feiras. Isso só não acontece em casos muito raros - quando ela tira férias, ou então quando está muito doente. Caso contrário, nada impede que Léa visite os 70 idosos - cuja relação é tão próxima, que ela sabe o nome e a história de cada um deles. "Eu já ouvi que sou o sol, um anjo, ja fui chamada de mãe… Eles pedem para que eu nunca saia de lá. Por isso digo que não tenho só dois filhos, mas 72", diz.
Os dois filhos de Léa também são voluntários no Lar. Priscila, como farmacêutica, e Fernando, como dentista. Até o genro, que é ortopedista, participa. "Esse é um legado que eu quero deixar para eles", diz Léa.
Alem de dar atenção aos velhinhos a cada visita, o cargo de presidente de Léa exige que ela tome conta de diversas funções administrativas, como buscar recursos, doações e parcerias para a instituição, afinal, apenas idosos carentes vivem no Lar, que e uma entidade filantrópica. "Esse é um trabalho que eu considero primordial na minha vida hoje", conta.
Durante a gestão de Léa como presidente, foi erguido o Recanto das Laranjeiras, conquista que ela considera a mais significativa. O local foi construído em 2013 com recursos da venda de um terreno que o Lar da Velhice possuía e com grande ajuda da comunidade. O Recanto é uma casa de repouso particular, cujo objetivo é ajudar financeiramente o Lar da Velhice (além de suprir a demanda da sociedade, que precisava de mais uma casa de repouso). O que é arrecadado no Recanto é repassado para as despesas do Lar.
A nova instituição levou cinco anos para ser construída. "E foi toda feita com ajuda da comunidade. Considero uma gestação de cinco anos", diz Léa, referindo-se à quantidade de trabalho que teve até finalmente ver uma nova casa de repouso, com mais de dois mil metros quadrados, finalizada. O dia da inauguração, quando Léa discursou para a comunidade que ajudou na construção do Recanto, é, até hoje, considerado por ela, o ápice de sua realização como presidente. Na época, ela foi atrás de tudo para a construção da nova casa, desde o piso de parquê, até os funcionários que fariam parte da equipe. "Eu vi que a solução era arregaçar as mangas e ir buscar tudo", conta Léa. "Tem que ter disponibilidade e conhecer pessoas."
Léa também foi responsável por mudanças dentro do próprio Lar da Velhice. As inovações podem parecer pequenas, mas fizeram grande diferença na vida dos idosos que passaram por lá. Antes, quando um deles falecia, por exemplo, não era costume que um padre visitasse o Lar. Hoje, graças à Léa, cada vez que isso acontece, um frei Capuchinho é chamado.
Outra mudanca é que nenhum idoso precisa ficar no Lar contra sua vontade. Léa decidiu isso depois de acompanhar o caso de uma senhora que não estava feliz na casa de repouso. Após muito procurar, ela encontrou uma sobrinha da idosa em Santa Catarina, para onde ela se mudou. "Eu pensei que não devia mais permitir que eles ficassem lá se eles não quisessem. Eu sempre achei um desrespeito eles não poderem optar. Essa idosa poderia ter entrado em depressão, e sabemos que a depressão abre portas para outras doenças, além de fazer muitas vezes que a pessoa vá antes do tempo", diz.
Além disso, Léa estipulou os passeios regulares com os velhinhos, ao perceber que na reclusão da casa de repouso eles haviam perdido totalmente o contato com a vida lá fora. "Onde eles querem passear, a gente leva. Eles já foram para Ana Rech, para as piscinas do Juventude… Mas normalmente, o que eles querem mesmo é ir para Caravaggio."
Léa também faz com que todos os velhinhos recebam um parabéns para você cantado no dia de seus aniversários. Uma vez por mês, uma doceria de Caxias doa uma torta para isso. Além dos aniversários, eles fazem festas de Páscoa, Natal, Carnaval, além de bailes. "O meu desejo era transformar o Lar da Velhice em um lar, e não em um depósito."
Hoje, só não tem TV no quarto quem não quiser, segundo Léa. A história das TVs começou com dona Madalena, uma idosa que fazia bonecas à mão. Um dia ela perguntou a Léa se conseguiria comprar uma televisão se vendesse todas as bonecas. "Então eu ajudei ela fazer isso. Com o dinheiro, é claro, não deu para comprar a TV. Mas eu fui numa loja e comprei com meu dinheiro, e dei a ela dizendo que havia comprado com o dinheiro das bonecas. A autoestima dela aumentou muito, ela mostrava para todo mundo aquela televisão", relembra Léa.
Hoje, a presidente não precisa mais comprar televisões para os velhinhos com o dinheiro do próprio bolso. Todas as outras depois dessa vieram de doações.
O interessante é que Léa parece ter um jeito e uma solução para tudo. Na época do casamento de João e Olinda, quando todos perguntavam "mas e se agora todos quiserem casar?", ela dizia calmamente "bom, então, nós os casamos"; na época da história da televisão, quando perguntavam "e se todos agora quiserem uma televisão?", a resposta dela era "então vamos conseguir 70 televisões".
Parece ser simples para Léa explicar por que o voluntariado é parte tão importante de sua vida. "Sei que isso me faz bem", ela diz. Não só porque eles são idosos, explica ela, mas porque sabe que eles precisam de suporte psíquico. "Ver que o meu trabalho é importante para eles, ver que eu consigo fazer eles viverem melhor, com mais qualidade de vida, sem tristeza, sem viver a melancolia da morte e podendo se dedicar aos pequenos e cotidianos prazeres, como diz Freud, é muito gratificante", diz Léa, uma admiradora do austríaco criador da psicanálise, cujo retrato está exposto em seu escritório.
Léa é psicanalista e, apesar das atividades do Lar, consegue atender até 12 horas por dia em seu consultório em São Pelegrino. Além de Freud, um outro quadro se destaca no aconchegante consultório de Léa: o certificado de Cidadã Caxiense, que recebeu em 2008. Natural de Bom Jesus, Léa, filha de Eduino e Cléa Fernandes, veio a Caxias aos 17 anos de idade para estudar. O fato de não ter nascido aqui já lhe rendeu histórias engraçadas, como quando concorreu a Miss Caxias, aos 18 anos de idade. "Um dos jurados disse para o meu marido, que na época era namorado, que eu só não ganhei porque eu não era de Caxias", diz, mostrando a foto de quando posou para o concurso, na época em que estava ainda cogitando a ideia de se tornar psicóloga e, mais tarde, psicanalista e voluntária.
Léa, hoje com 63 anos, está casada com o empresário João Signori, há 38. Em 2015, ela deixa de ser presidente do Lar da Velhice, mas segue com o voluntariado. "Até o fim dos meus dias."